Consumidor de classe média, um ilustre desconhecido

Eles já são mais da metade da população brasileira – 53,8% em dezembro -, movimentaram no ano passado algo como R$ 575 bilhões e, por isso, constituem o grande mercado consumidor do País. Ainda assim, são…

Eles já são mais da metade da população brasileira – 53,8% em dezembro -, movimentaram no ano passado algo como R$ 575 bilhões e, por isso, constituem o grande mercado consumidor do País. Ainda assim, são desconhecidos para grande parte das empresas, que se esforçam para entender as motivações desse grande contingente que vem apresentando elevação em seus padrões de consumo nos últimos anos, tanto que o Brasil já é considerado por muitos como um país de classe média.
De acordo com um estudo realizado pela Fundação Getulio Vargas, o número de brasileiros na faixa de renda familiar mensal entre R$ 1.064,00 e R$ 4.591,00 aumentou mais de 10 pontos percentuais desde 2004. A razão para esse desempenho é a estabilidade econômica e a redução da pobreza, que se intensificaram neste período. Para a FGV, isso é reflexo do aumento do emprego com carteira assinada.
Segundo o publicitário Renato Meirelles, da Agência Brasil Comunicação, o Plano Real, implantado em 1994, foi o estopim desse movimento que levou ao aumento do poder de compra da baixa renda e que acabou se transformando na classe média. Houve um processo de estabilidade da inflação e daí decorreu o acúmulo de renda. “Parece óbvio, mas quando você vai ver num processo histórico, faz muita diferença, pois pessoas com menos de 30 anos já não sabem o que é viver com inflação. O pessoal que está fazendo cursinho aprende isso nas aulas de história”, diz o profissional que há nove anos dedica-se a estudar e trabalhar com foco nessa faixa de consumidores.
Se antes do Plano Real, a inflação chegava a 80% ao mês, a partir da estabilidade o consumidor foi desafiado a aprender a consumir. “O trabalhador recebia o salário e tinha que sair correndo com ele para gastar – imagine uma pedra de gelo derretendo num sol de 40 graus. Era o tempo de chegar no primeiro supermercado, comprar comida e estocá-la. Assim, não se tinha condições de comparar preços porque era preciso comprar no primeiro lugar”, recorda Meirelles. A economia que poderia ser feita ao comparar os valoires dos produtos corria o risco de ser superada pela velocidade das máquinas de remarcação dos preços.
O publicitário constata que a forma das famílias consumirem foi bastante acentuada nos últimos seis anos. O motivador desse processo foi a migração de 20 milhões de pessoas para a classe C, deixando os segmentos D e E. Porém, esse grande contingente traz consigo características próprias que o tornam muito diferente daquele público com o qual o mercado costumava tratar. “É uma pessoa que tem bolso de classe média, mas tem a cabeça de baixa renda. Ele veio da classe D para a classe C, tem muito mais dinheiro para consumir, mas a forma como ele enxerga o mundo, lê as notícias, recebe a comunicação e compra um produto é diferente”, descreve.
Por isso, compreender o consumidor de classe média é um dos principais desafios atuais para as empresas. A crise econômica mundial deu ainda mais importância a esse público, já que é justamente pela pujança do mercado interno que o Brasil tem resistido melhor à turbulência do que outros países.
A agência de publicidade McCann Erickson e o Instituto Data Popular saíram às ruas para conhecer essa realidade e aplicaram mil questionários junto a casais de São Paulo, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre e Goiânia com renda entre R$ 1 mil e R$ 2 mil. Alguns desses dados ilustram essa reportagem. Diante de uma série de conclusões, a agência decidiu criar uma nova unidade de serviço, a Bairro, direcionada especificamente ao universo da classe C.

– Estilo de vida
68% sentem-se desprezados pelos ricos
55% são avessos a produtos comercializados em lugares considerados chiques
53% não pretendem se mudar de bairro
71% querem ficar na mesma cidade
75% acreditam que os jovens de hoje são mais consumistas

– Finanças
38% têm o hábito de poupar
59% adotam o lema “vivo com o que tenho e compro o que é possível”
82% priorizam a estabilidade econômica
59% têm cartão de crédito
50% têm como meta comprar um carro zero quilômetro
44% elegem o financiamento de 36 meses como
forma de alcançar o objetivo
47% afirmam já terem feito empréstimos bancários
81% sentem vergonha ao fazê-lo
91% apontam a burocracia como principal
problema na obtenção do crédito
80% dos homens e 76% das mulheres acham que elas também devem colaborar financeiramente

– Lazer
76% fazem sua principal refeição em casa
78% consideram a combinação arroz e feijão essencial
85% acham que o lazer une a família
58% têm computador
57% possuem DVD
44% se declaram dependentes da
tecnologia
83% dos pais estão empenhados em
fazer a tecnologia chegar aos seus filhos

Falta de informação compromete estratégias
Difícil de padronizar, a classe média reúne vários perfis de clientes. A tarefa de enquadrá-la fica ainda mais onerosa se forem incluídas as faixas D e E, compondo o que se definiu chamar de baixa renda e que abarca 85% da população brasileira. Porém, mesmo com todo esse tamanho, ainda há quem a trate como nicho de mercado. “Nicho são os restantes 15%”, diz o publicitário Renato Meirelles.
Segundo o especialista, a maior parte dos erros básicos cometidos pelas empresas decorre da distância entre o público de classe média e os executivos. “De um lado há um consumidor com classe escolar baixa e uma visão de mundo diferente, e do outro estão executivos de Marketing, todos com MBA, que não têm a menor noção de periferia”, relata. Meirelles afirma que é mais fácil falar para os iguais, porém é preciso chegar à linguagem de um consumidor heterogêneo e que, cada vez mais, se qualifica, seja pelo acesso a tecnologias ou à educação.
Meirelles lista erros que fazem parte do conceito difundido entre empresas sobre a baixa renda. “Confunde-se um olhar direcionado para preço com a premissa de que consumidor de baixa renda compra por preço.” Nos primeiros anos de Real, foram lançados produtos mais simples e mais baratos. Foi o primeiro movimento para vender produtos de baixa qualidade a preços reduzidos.
Assim, chegaram as marcas “taliban”, desconhecidas e que não investiam em comunicação. Inicialmente, atraíram os consumidores, mas com a melhora da renda, esses produtos foram substituídos por outros, de melhor qualidade e mais conhecidos. “O consumidor de baixa renda compra pela relação custo-benefício. E a razão disso é muito clara e óbvia: ele não pode errar. Como o dinheiro é muito contado, o preço do erro da baixa renda é muito maior.”
Outro equívoco diz respeito à fidelidade à marca. Segundo o publicitário, esse é um item importante no processo de compra e é sinônimo de qualidade. Meirelles diz que isso leva a classe média a ter motivos de compra distintos das classes A e B. Enquanto os mais ricos buscam exclusividade, a baixa renda quer inclusão.
Para um adolescente que vai à Disney, abre-se a possibilidade de comprar um tênis a que os colegas não terão acesso. Porém o jovem da periferia pode comprometer boa parte de sua renda em um tênis porque seus amigos também o têm.

Imagem do público é distorcida
Uma forte tendência entre as empresas é imaginar a baixa renda com um espelho distorcido dos mais ricos, quando o que ocorre é justamente o contrário. Os consumidores de menor poder aquisitivo não se sentem atraídos por produtos que identificam como dirigidos ao topo da pirâmide econômica e social. “A classe C nem entende comerciais muito requintados. A comunicação popular tem que ter ISO: ser inteligível, simples e objetiva”, afirma o publicitário Renato Meirelles. Essa percepção foi captada por uma pesquisa realizada pela agência McCann Erickson e o instituto Data Popular: 55% dos entrevistados são avessos a produtos comercializados em lugares que consideram chiques.
“Por isso, se quiser conquistar esse consumidor, é preciso dialogar com as referências da cultura popular brasileira: alegre, colorida, extravagante e farta”, ensina Meirelles. Para o publicitário, esse público está ligado a manifestações como Carnaval, festas juninas e artesanato e não vai deixar de ter esse senso estético somente por que melhorou sua condição financeira. Sem esquecer também que o fator comunidade tem um peso importante.
A pesquisa da McCann Erickson mostrou que as famílias de classe média concentram suas relações em uma área de até 200 metros de distância da sua casa, incluindo suas compras nessa zona. Assim, a propaganda boca a boca adquire relevância e um diferencial. “A classe A fala que comprou no shopping enquanto foi no comércio popular porque busca a exclusividade. Já a classe C quer dividir a informação sobre a oferta que encontrou para que outras pessoas também possam se beneficiar – é o sentimento de inclusão”, analisa Meirelles.

Mais lazer e acesso à educação marcam a geração C
Jovens conectados à internet – 62% dos domicílios conectados à rede mundial de computadores estão nas classes C, D e E -, com acesso a universidades e inseridos no mercado de trabalho compõem um perfil identificado como geração C, ou seja, o futuro da classe média brasileira. A transformação pela qual passa essa fatia da sociedade se iniciou pela melhoria da renda e maior acesso a bens e produtos, mas o avanço da formação escolar e cultural está gerando uma nova etapa de transformações. Pesquisas mostram um fenômeno interessante: na classe A, 10% dos jovens na faixa de 25 anos têm escolaridade superior à do pai, enquanto na classe C esse percentual chega a 68%. Ou seja, são os primeiros da família a concluir o Ensino Médio ou chegar à universidade.
A família Pires, de Viamão, vive bem esse novo contexto. A filha Caroline, de 25 anos, cursa a faculdade de Letras na Pucrs, em Porto Alegre, com uma bolsa integral do Programa Universidade para Todos (Prouni), do governo federal. Além dela, mais dois irmãos conquistaram o benefício e chegaram ao Ensino Superior em uma família na qual a mãe havia concluído o Ensino Médio e o pai finalizou recentemente um programa de educação para jovens e adultos. “Seria quase impossível cursar essa faculdade se não tivesse a bolsa, talvez pudesse acessar um curso mais barato, mas, mesmo assim, seria muito difícil”, diz Caroline.
O curso que a jovem faz na Pucrs tem mensalidade média de R$ 1,1 mil. Desde o ano de 2005, 435 mil pessoas se beneficiaram das bolsas do Prouni em todo o País, dos quais quase 36 mil no Rio Grande do Sul. “Esse novo jovem, que é bastante diferente do pai dele, vai ditar os rumos do consumo no Brasil nos próximos 15 anos, e essa é a maior diferença”, interpreta o publicitário Renato Meirelles.
A tecnologia, além de ser um ingrediente importante para a mudança no perfil educacional, também está valorizada quando interfere no lazer das famílias de classe média. O estudo da agência McCann Erickson e do Instituto Data Popular mostra que 58% dos lares pesquisados têm computador e 57% possuem DVD. Formas de aliar segurança e diversão, os itens tecnológicos são utilizados por toda a família – 85% acham que o lazer une a família e 82% acreditam que equipar o lar com artigos tecnológicos aumenta o entretenimento e a diversão.
Assim, 80% dos entrevistados acham que o computador é fundamental e que não dá para viver sem ele. Entre os casais mais jovens, 44% se declaram dependentes da tecnologia e para 61% a tecnologia é algo que contribui para o bem-estar da família. Já 83% dos pais estão empenhados em fazer a tecnologia chegar aos seus filhos, uma vez que se sentem responsáveis por esse acesso.

Varejo saiu na frente para entender os clientes
O varejo é setor que mais se dá bem no desafio de vender para a classe média, avalia o publicitário Renato Meirelles, e o motivo é simples. “O varejo tem barriga no balcão. As grandes redes varejistas são de pessoas que vieram de baixo, o que o levou a entender esse consumidor muito antes do que a indústria”, explica. Um impulso importante para esse negócio foi a bancarização da população de baixa renda, um filão de mercado captado pelos bancos e também pelas lojas, que focaram suas operações na maior oferta de crédito ao consumidor.
Mas lidar com empréstimos e financiamentos ainda é assustador por uma parcela significativa da classe média: 47% dos entrevistados pela McCann Erickson e Data Popular já fizeram empréstimos e 81% têm vergonha de terem feito. O cartão de crédito está presente em 59% das famílias, mas 70% têm dúvidas sobre seu funcionamento. Por isso, o diretor de relações institucionais do Itaú, Ricardo Terenzi, ressalta a necessidade de difusão de informações, ensinando o consumidor a se relacionar com o dinheiro. “O crédito, usado de maneira correta, é bom para todo mundo”, diz.
Terenzi afirma que a maneira como será organizado o orçamento de cada família depende do momento pelo qual passa, mas realizar essa tarefa não é apenas olhar despesas e receitas e impor limitações, mas sim como usar os recursos. “Para isso, é preciso priorizar gastos e fazê-los de maneira mais correta, não só restringindo o consumo”, explica.
Além do varejo, alguns segmentos industriais bastante focados ao consumidor se dão bem na comunicação com a classe média, como as indústrias de tecnologia. A Positivo Informática, por exemplo, direciona suas campanhas de marketing a explicar às famílias quais são os usos que um computador pode oferecer. O conceito de computador da família foi desenvolvido após pesquisas mostrarem que, na classe média o equipamento é utilizado por todos os moradores da casa e ocupa um lugar de destaque na residência, diferentemente do que ocorre nas classes A e B, nas quais cada pessoa tem sua própria máquina, revela o diretor de Marketing da companhia, César Aymoré.
Na comunicação da Positivo, não há espaço para expressões técnicas e de difícil compreensão. Tudo é traduzido para que todos compreendam. Além disso, Aymoré diz que as exigências tecnológicas são diferentes entre os segmentos da população, o que faz com que os preços também possam ser direcionados. Mais uma vez, a relação custo-benefício tem que valer a pena.

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